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segunda-feira, 19 de maio de 2014

A poesia que volta

Mea culpa

Vou estragar tudo agora:
Chegar antes do tempo
Sair antes da hora
Dar o último gole
Dizer a palavra maldita
Calar a que grita
Cometer o erro crasso
Omitir as minhas faltas
Resumir minhas desculpas
Usar a frase feita
Colocar um ponto final.


Micropoema sobre a urgência do amor:

Seduza-me
e
devora-me

quarta-feira, 26 de março de 2014

A EPIDEMIA


O sol quase a pino, um calor quase infernal, quase meio-dia, num dia de muitos quases. Alguns quase perderam o ônibus, outros quase perderam a hora, uns tantos quase perderam um amor, poucos quase foram felizes. O vai e vem de pessoas fazia qualquer um desaparecer no meio da multidão, cada um com seu cada qual. Mudas e robóticas as pessoas seguiam o fluxo cotidiano: casa, trânsito, trabalho, trânsito, casa. Foi aí, no meio do tudo/nada que o homem caiu. Caiu assim à toa. Não esbarrou em ninguém, não tropeçou, não deu um grito, não reclamou de nada, apenas caiu assim, como um fruto despenca do pé. Com a mão em torno do pescoço e os olhos saltados das órbitas o homem tinha a cara do desespero. Em poucos segundos se formou uma pequena aglomeração em volta do homem caído:
- Chama a ambulância! – as vozes gritavam aflitas.
As pessoas mais solícitas tentavam todas as técnicas de emergência aprendidas na televisão. Estica o homem no asfalto, faz massagem cardíaca, dá tapinhas na cara, dá água ou qualquer coisa que o tirasse daquele estado angustiante. Nada de melhora. Ele permanecia com o olhar perdido, as mãos agoniadas como se tentassem tirar uma corda invisível que o sufocava.
A ambulância tardou apenas o tempo do trânsito caótico. Levaram o homem para hospital mais próximo. Correram com a maca e começaram a examiná-lo. Pressão um pouco alterada, mas nada preocupante. Coração um pouco acelerado, mas nada demais. Oxigenação do sangue em perfeita ordem. Temperatura elevada. Infecção, concluíram. Os exames comprovaram que nada havia. Tudo normal. E o homem agonizava, quase cianótico na maca do pronto atendimento. Dá-lhe antitérmico, analgésico, antialérgico, antibiótico e qualquer coisa que combatesse o que desconheciam. E o homem continuava com o olhar de quem pede socorro. Não falava, não gemia. Apenas tentava desfazer o nó invisível que lhe apertava o pescoço. Uma junta médica se formou. O que fazer com o que não se sabe?
- Interna e isola. – o médico chefe do plantão falou com a sabedoria da ignorância.
Assim foi feito. Levaram o homem pra um quarto isolado dos demais e passaram a monitorá-lo. De hora em hora exames refeitos, sinais vitais medidos e nenhuma melhora. O enfermeiro, entre um exame e outro, já angustiado com a agonia do homem, resolveu conversar com ele. Embora ele não conseguisse falar, talvez desse alguma pista do que estava acontecendo. Perguntas de praxe e o olhar suplicante por ajuda do homem.
- Eu queria poder ajudar o senhor...- desistiu o enfermeiro, reconhecendo sua impotência diante do desespero.
O homem, então, ergueu uma das mãos. Fez um gesto solto no ar, como quem escreve no vazio.
- O senhor quer uma caneta?
Sem palavras o homem se fez entender. Talvez quisesse deixar algum recado para alguém ou quem sabe explicar o que estava acontecendo. O enfermeiro correu e arrumou uma caneta e um bloquinho de receitas para o agonizante deixar seu recado.
Com dificuldades o homem sentou-se na cama e com as mãos trêmulas ele começou a escrever. Uma folha, duas, três. Os minutos passavam e ele escrevia compulsivamente. Um bloquinho inteiro, frente e verso. O enfermeiro conseguiu mais alguns bloquinhos e observava incrédulo o rapaz escrevendo como um louco. Achou melhor chamar o médico de plantão, que achou melhor chamar o chefe dos médicos, que achou melhor chamar a junta médica pra ver o que acontecia. O homem escrevia num transe. Não atendia aos chamados, apenas olhava para o vazio vez por outra e sorria. Ficou assim por horas, até sentir-se aliviado de si. Deu um suspiro aliviado ao escrever a última linha. Levantou-se e espreguiçou-se como quem desperta de um sono profundo.
- Estou bem – afirmou.
Os médicos não acreditavam no que viam. Nos bloquinhos escritos havia um romance, duas crônicas, quatro contos, vários poemas, alguns haicais e sonetos. Resolveram repetir todos os procedimentos já feitos. Tudo normal. O homem estava melhor do que antes. Não havia mais como mantê-lo no hospital. Enquanto decidiam o que fazer com o paciente curado por si só, um atendente interrompe o silêncio reflexivo dos doutores.
- Chegou mais um, igualzinho a esse aí.
Correram todos até a emergência. Um garoto, novo ainda, dezessete, dezoito anos talvez, com os mesmos sintomas. Exames normais, olhos saltados nas órbitas e as mãos em torno do pescoço tentando desfazer o nó. Correram com o garoto para o isolamento e o colocaram no mesmo quarto do homem, que já se sentindo muito bem, conversava animadamente sobre seus escritos com algumas enfermeiras. O moleque na cama agonizava.
- Dá um bloquinho pra ele – sugeriu um enfermeiro.
Foi feito rapidamente. É difícil olhar para os olhos do desespero. Receituário e caneta nas mãos do menino. Ele olhou aliviado ao ver a caneta em suas mãos. Desprezou o receituário e foi para as paredes. Uma enfermeira mais velha tentou impedi-lo, mas o chefe do plantão fez um sinal para deixá-lo. Traços, que se transformaram em desenhos, rostos, folhas, flores, letras, animais. Tudo brotava das paredes imaculadas do hospital. Algum tempo depois, um painel estava concluído. O rapaz suspirou aliviado e sorriu.
-Estou bem – afirmou.
Todos olharam para ele incrédulos. O garoto parecia ótimo. Olhava sua obra e comentava com as pessoas do quarto sobre a sua criação. Enquanto se decidia o que fazer com os dois curados, outro enfermeiro interrompeu os pensamentos técnicos da junta médica que se formara:
- Chegaram mais uns cinco ou seis, do mesmo jeito que esses dois. E tem mais, no refeitório o psiquiatra está cantando, acho que é essa coisa de ópera e tem umas duas ou três enfermeiras dançando.
A junta médica saiu ensandecida pelos corredores do hospital. Havia um ar caótico no local. As pessoas não paravam de chegar. Todas com os mesmos sintomas: as mãos no pescoço, os olhos saltando das órbitas, febre e desespero. Só se acalmavam depois de alguma coisa absolutamente inusitada. Havia os que cantavam, os que escreviam, os que compunham. Alguns médicos já se mostravam-se contaminados pelo estranho acontecimento. Na ortopedia, alguns faziam esculturas com o gesso. Na pediatria, desenhos coloridos invadiam as paredes e corredores. Na UTI podia se ouvir cantos e batuques. O alto falante do hospital requisitou a junta médica na sala do diretor do hospital. Algo grave estava definitivamente acontecendo.
- Senhores, estamos diante de uma epidemia nunca antes vista. Os últimos boletins afirmam que o que se passa aqui não é diferente do que acontece na cidade inteira e tudo avança em uma proporção devastadora.
O diretor ligou a televisão. Os plantões de todas as emissoras noticiavam o insólito. A cidade estava em caos. No metrô um grupo dissidente de uma grande orquestra se apresentava em plena plataforma. Nas ruas o trânsito era interrompido por grupos de dançarinos que faziam performances entre os carros. Poemas eram ouvidos aos quatro ventos. Nas escolas as cores se espalhavam pelos muros, frutos das criações infantis. A polícia foi chamada, mas em muitos casos os policiais se uniam ao movimento e aumentava a massa de delirantes. A junta médica, atônita, assistia ao que era noticiado. Um dos médicos começou a desenhar na agenda. Outro batocava a caneta na mesa, tentando em vão controlar o impulso do ritmo, sob o olhar incrédulo dos demais.
- Em breve, senhores – prosseguiu o diretor – todos nós seremos contaminados. Não há nada que possamos fazer. A epidemia é definitiva, ninguém se salvará.
Os olhos tristes do diretor contrastavam com a luz e o brilho que a cidade emanava através de cores e sons. O mundo sucumbiria definitivamente à arte.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Eu não sei sambar

Eu não sei sambar. Isso é extremamente limitador no país do carnaval. Não poderei ser destaque de alguma escola de samba, não sairei jamais como passista e nem ganharei nenhum prêmio por isso, serei apenas uma observadora nas gafieiras. Por mais que eu tente, e eu nem tento tanto, meus pés seguem ali, fixos no chão. Minha alma até que samba e meus membros tortos arriscam um passinho universal, adequado pra os diversos ritmos que não se encaixam no meu corpo.
Eu não sei sambar. Não sei muitas outras coisas que são muito importantes para mim, mas tenho dificuldades que se integrem a mim. Sambar é só uma delas. Não sei lidar com a solidão, embora eu necessite dela. Não sei me entregar, embora a intensidade seja uma das minhas melhores qualidades. Não sei me maquiar, andar de salto, rir baixo, ordenar minhas coisas...
Não saber é ser livre. A ignorância abre as portas do que é possível. Não sambo, não preciso pintar minha cara, não sinto necessidade de me equilibrar nas alturas e tudo isso não me faz falta. Ando tão parecida comigo que me assusto.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Tempo, tempo, tempo...

A solidão é uma benção que não possuo. A necessidade é uma mãe cruel. O tempo é um pai carrasco. Garimpar minutos tem sido uma arte, um trabalho árduo, que não me basta. Quero mais. Quero sempre mais. Sou um ser de desejos. Por que não consigo me contentar com o que foi me dado? Por que tenho que estar sempre nessa busca alucinada? Nem sei direito das minhas vontades. Agora sei que preciso de solidão e tempo. Os dois juntos. Não como eles vêm para mim: solidão fragmentada, tempo homeopático.
Não tenho saudades do que já passou. Só aquilo que eu poderia ter feito é que me faz falta. Hoje farei tudo. Tudo o que posso, tudo o que me é permitido (ou não), tudo o que desejo. Amanhã não sei. Ontem não fiz.
Como o mestre disse: é tempo de travessia.

domingo, 29 de julho de 2012

Preguiça

Ando com uma preguiça danada de mim. Existem pecados bem mais deliciosamente interessantes...a luxúria, a gula, a ira (ou todos juntos). Só que a preguiça me dominou nos últimos dias. Não acho de todo ruim, ela é o tempo que tenho para meus pensamentos se distraírem e minha alma ficar tranquila no momento da espera. Ela é o tempo sem pressa, sem a agonia das horas urgentes.
Entender alguns períodos como momentos de espera é bem difícil em tempo de ultra velocidades. Tudo gira tão depressa. As informações, o conhecimento, as pessoas, os olhares. Quero desacelerar, fingir que sou sábia, como eram os bons que me precederam, e deixar que a vida aconteça sem a ansiedade do momento seguinte. Amanhã vai ser outro dia e é muita provável que eu não possa uras mais a roupa confortável da madorna e entrar no moto-contínuo louco da minha rotina. Acho que nem é hora de pensar no amanhã, nem sequer no próximo minuto. Estou com preguiça disso também.

NOTA:
A Preguiça: a Igreja Católica apresenta a preguiça como um dos sete pecados capitais, caracterizado pela pessoa que vive em estado de falta de capricho, de esmero, de empenho, em negligência, desleixo, morosidade, lentidão e moleza, de causa orgânica ou psíquica, que a leva à inatividade acentuada. Aversão ao trabalho, frequentemente associada ao ócio, vadiagem. Do latim prigritia.
Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/Pecado_capital_(cristianismo)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Nariz absoluto no homem relativo

Na hierarquia dos sentidos o olfato não ocupa uma posição muito digna. Talvez seja o sentido que tenhamos menos pena de perder. Meu avô Salvador (acho que tinha esse nome pelas inúmera vezes que teve que salvar a si próprio) perdeu o olfato por conta de uma meningite, da qual sobreviveu, naqueles tempos difíceis. Sempre se falou que o dano foi mínimo, "foi só o olfato". Não creio que seja assim. O olfato é o sentido das lembranças. Cada cheiro de passado é uma imagem que se forma. O cheiro da casa da minha avó no interior, do pão feito em casa, do óleo diesel dos caminhões que passavam por nós na estrada, cheiro de filho, de pele quando se sai do banho, de terra molhada... Não posso menosprezar os demais, somos dependentes de todos os sentidos para a percepção do mundo,e particularmente, são eles que me aproximam de uma vida instintiva, adormecida pela intelectualidade pós-moderna. No entanto as particularidades do olfato me encantam. A perda de outros sentidos faz que outros se agucem. O olfato não. Diretamente ligado ao paladar, sua perda causa uma diminuição significativa percepção do gosto das coisas. É o sentido da parceria, não caminha só.
Gosto de cheirar. Não é um hábito muito educado e cultuado. Talvez se eu tivesse vivido nos primórdios da existência humana fosse algo aceitável e necessário. Atualmente com tantos prazos de validades e selos de segurança tornou-se quase que obsoleto. Cheirar o mundo é inspirá-lo. Gosto de cheirar meus textos assim que termino de escrevê-los com caneta esferográfica. É único, porque é volátil. Em minutos o odor se esvai e restam apenas as palavras. Nessa hora tenho a sensação de colocá-las para dentro de novo. Encher os pulmões de inúmeras partículas invisíveis. Inspirar. Também gosto disso, em todos os sentidos que isso tenha. Oxigenar meu corpo de tudo. Inspirar sempre. Inspiro-me.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

O diabo e o sete de ouros

Gosto de oráculos. Principalmente porque a linguagem deles cabe em qualquer expectativa. O tarot me fascina. Tantos símbolos que eu posso jogar e pronto, minha resposta estará lá, ainda que eu não esteja pronta para entende-la.
Eu estava querendo respostas. Joguei. O diabo e o sete de ouros. algumas cartas possuem nomes meio assustadores: o diabo, a morte, o enforcado. Tudo bem, muitos já sabem que são só nomes, as cartas que têm nomes agradáveis nem sempre são tão boas assim. Mas virar uma carta assim sempre me gela a espinha.
Os prognósticos não eram ruins. Sempre me sobram da leitura das cartas algumas poucas palavras. Coragem. Não vender sua alma. Não é preciso uma carta para me dizer isso.Minha alma não tem preço. Pelo menos agora.
Em outros tempos já foi vendida, emprestada, doada, esquecida. Agora sinto-a minha, absolutamente minha. Foi um encontro difícil, descobrir-me. Tem sido. Não posso mais me negar esse prazer solitário da minha eterna busca. Eu.